Aconteceu Comigo – Livro
A pesquisadora Nara Bretas compartilha suas impressões após analisar a HQ “Aconteceu Comigo – Histórias Reais de Mulheres em Quadrinhos”, de Laura Athayde, em sua tese de doutorado
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A pesquisadora Nara Bretas compartilha suas impressões após analisar a HQ “Aconteceu Comigo – Histórias Reais de Mulheres em Quadrinhos”, de Laura Athayde, em sua tese de doutorado
Não sei ao certo quando meus caminhos encontraram os trabalhos de Laura Athayde. Mas me recordo que, desde que isso aconteceu, a artista vem me surpreendendo positivamente com sua pluralidade de traços e experimentações visuais que dão a toda sua obra uma versatilidade ainda que sua identidade seja mantida. Quem acompanha Laura sabe: seus quadrinhos vezes parecem feitos a mil mãos, mas todos e cada um deles tenham “um quê” de Laura, o que é perceptível até mesmo a seus leitores mais distraídos. Autora das zines Delirium (2013) e O mundo é um jogo e eu só tenho mais uma vida (2013), da HQ longa Arquipélago (2015) e da coletânea Histórias tristes e piadas ruins (2018) a artista escreveu também uma HQ longa para a revista Mina de HQ #3, e eu mal posso esperar para ler!
Passei quatro anos estudando Laura e sua atuação no cenário de HQs nacional para minha pesquisa de doutorado e, por isso, posso afirmar com convicção: Ela é uma artista que você deve acompanhar de perto.
Muito tem se falado da quadrinista e Aconteceu Comigo – Histórias Reais de Mulheres em Quadrinhos por aqui nos últimos tempos. Não por menos. Publicada em 2020 pela Balão Editorial em parceria com a Itaú Cultural, a #AconteceuComigoHQ é a próxima leitura do Clube de Historietas da Mina de HQ.
Mas não é só por isso.
É pela potência da obra, pela força narrativa das vidas retratadas. Pela leitura sensível de Athayde dos relatos recebidos, vidas de mulheres brasileiras que em sua essência nos revelam uma realidade difícil de engolir: as violências que as mulheres desse país experienciam diariamente em suas particularidades, e ainda assim dizendo de todas e cada uma de nós.
Em cada quadrinho, em cada página, sentimos o clamor de nossas mulheres por mudanças. Um retrato bastante fiel, eu diria, daquilo que nos revelam os dados estatísticos do nacionais quanto às violências contra as mulheres. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a cada sete horas uma mulher é assassinada e a cada 10 minutos uma menina ou mulher é vítima de estupro no Brasil. Números que são maiores quando observados, diz a pesquisa, a partir do viés de classe e raça.
Se preocupando com representação e representatividade, Laura apresenta as brasileiras em sua diversidade. O que fica evidente no cuidado e pesquisas dedicados ao longo dos quatro anos que a artista construiu a série, que foi escrita entre 2015 e 2019. Um presente para todas nós, que temos a oportunidade de nos vermos, e aquelas em nossa volta, representadas em uma coletânea de HQs tão sensíveis.
O afeto está, também, em todos os quadrinhos que compõem o livro e no compromisso que a artista assume no texto que os acompanhou quando publicados no Instagram: o de tentar despertar empatia e mostrar vozes de mulheres que recebem pouco, quando algum, espaço nas mídias tradicionais. Tudo isso aliado às mensagens de esperança de que ela tenta passar no desfecho que cada vivência narrada, mostram o compromisso feminista da artista com a política do cuidado de que nos fala Sarah Ahmed (2017). Segundo a autora, o ato de documentar e criar documentos ― o que em Aconteceu Comigo se dá pela construção de HQs que retratam as violências contra mulheres ou ainda as experiências apagadas ou silenciadas na história hegemônica ― é um projeto feminista. Um projeto de vida que Laura Athayde toma para si.
Basta olhar para como Laura cuida de suas leitoras/relatoras ao se colocar no lugar de escuta enquanto elas contam suas histórias de vida e, ao fazê-lo, dão um passo em direção a cura, como quem grita para o país inteiro as violências sofridas. Ela também cuida de nós, leitoras fiéis, quando nos convida a exercitar a escuta através de Aconteceu Comigo que, em suas 79 páginas, nos leva a olhar para nossas experiências, e a das mulheres com as quais convivemos, e a enxergamos que elas fizeram o que podiam dentro das realidades que lhes foram oferecidas.
Como aponta Diana Salu no prefácio que acompanha o livro: “Ouvir e perguntar. Perguntar e ouvir. Quanto nossas relações seriam melhores se esses fossem nossos primeiros impulsos ao nos comunicar? E é no movimento dessa dupla poderosa que a autora nos apresenta tantas e diferentes histórias de tantas e diferentes mulheres. E ainda há muitas outras histórias por aí. E para descobri-las você só precisa de duas coisas: perguntar e ouvir. E se preparar para que isso te mude de formas que nem esperava”.
No meu caso, ler e reler a série foi um tapa na cara seguido de um abraço, ambos necessários. E mal posso esperar pelas mudanças que esses quadrinhos podem promover. Em Aconteceu Comigo, Laura Athayde escreve a história de mulheres reais do Brasil, construindo memória enquanto faz história com esse retrato das violências sofridas pelas mulheres brasileiras de nosso tempo.
Um presente para aquelas que, como eu, curtem quadrinhos cotidianos e feministas. Mas principalmente um material forte e rico que certamente vai reverberar para as gerações futuras.
Este é o livro escolhido para a 11ª edição do Clube Historietas, o clube de leitura de quadrinhos da Mina de HQ. Uma ótima oportunidade para conversar com a artista e entender mais o universo da HQ.
Referências
AHMED, Sarah. Living a Feminist Life. Durham: Duke University Press, 2017.
ATHAYDE, L. Aconteceu comigo: histórias de mulheres reais em quadrinhos. São José do Rio Preto: Balão Editorial, 2020.
Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/violencia-contra-mulheres-em-2021/ Acesso: 13 out.2022.
Nara Bretas é pesquisadora de quadrinhos no digital desde 2012 e Doutora em Estudos de Linguagem (PosLing) pelo Centro Federal de Educação Tenológica de Minas Gerais (CEFET/MG), onde trabalha com as temáticas: Mulheres e Quadrinhos no Brasil, Narrativas de Vida, Análise do Discurso e Feminismos. Jornalista, Licenciada em Letras e admiradora das HQs desde muito nova, Nara ama quadrinhos cotidianos e surtadas ocasionais.
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