O segredo de Alison Bechdel
Alison Bechdel explora temas complexos e variados a partir da sua obsessão por atividades físicas na HQ O segredo da força sobre-humana.
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Alison Bechdel explora temas complexos e variados a partir da sua obsessão por atividades físicas na HQ O segredo da força sobre-humana.
O mais recente trabalho de Alison Bechdel (Todavia, 2023), O segredo da Força Sobre-humana, traz uma capa sugestiva que se relaciona bem com o título da HQ, mas que não entrega, nem de longe, a complexidade e variedade de temas abordados em suas páginas. E veja, isso não é um demérito, de forma alguma. Na verdade, posso dizer que é uma das obras com que mais me conectei em muito tempo, o que diz muita coisa dada minha enorme dificuldade de identificar com o que quer que seja.
Talvez isso se deva ao fato de que, sendo bipolar, eu tenha visto no comportamento de Bechdel muito de mim e muito mais ainda da Ellen Forney, autora de Parafusos, que narra justamente a trajetória de Forney entre o diagnóstico da bipolaridade e sua estabilidade emocional. No entanto, não sei se Bechdel tem algum diagnóstico além dos que são mencionados ao longo da HQ, como ansiedade, obsessão, hiper foco, depressão, uso de drogas etc.
Claro que em uma edição de mais de 200 páginas carregadas de referências literárias a uma série de autores transcendentalistas, além de uma contextualização histórica riquíssima, várias outras pessoas conhecidas também me vieram à mente, como a quadrinista Aline Zouvi, que além de pesquisadora especialista em Bechdel, também começou a compartilhar recentemente sua rotina de exercícios nas redes sociais, o que não me parece uma coincidência. Sobre isso, Aline me disse o seguinte:
O segredo da força sobre-humana é uma hq que me impactou de várias formas. À parte de questões óbvias, como eu ser tão fã da Bechdel a ponto de ter feito um mestrado sobre as obras dela (e estar doida por essa nova leitura), pra mim foi uma experiência muito forte ver uma quadrinista lésbica em seus 60 anos produzindo, plena, colocando suas ideias no papel, sem medo do erro, aberta ao desconforto e ao desafio que todo novo projeto traz. Desconforto, esse, presente também no livro: Bechdel confronta sua própria morte nesta hq, em que a gente entende, já no começo, que a atividade física talvez não seja o tema central — como em todos os seus livros, a autora brinca com vários níveis de subtexto, e o lidar com o próprio corpo pela ótica da atividade física é, para Bechdel, lidar, também, com a inevitável e progressiva decadência de tal corpo. Essa reflexão honesta e vulnerável sobre o morrer cria uma sensação de proximidade e identificação que são potências essenciais dos quadrinhos autobiográficos. Terminei a leitura emocionada, como se estivesse recebendo o abraço de uma amiga.
Já nas primeiras páginas Bechdel nos mostra porque se tornou uma autora tão premiada: ela é, afinal, uma excelente contadora de histórias. Ainda que sejam biográficas e às vezes tenhamos a sensação de que ela se repete em alguns pontos (principalmente ao se referir aos pais), a forma como Bechdel conversa com os leitores nos proporciona uma sensação de proximidade muito grande, como se realmente estivéssemos em uma sala conversando com ela.
Em O segredo da Força Sobre-humana, a quadrinista estadunidense nos leva em uma viagem pela história dos exercícios físicos nos EUA ao narrar sua obsessão (inconsciente, no começo) em impedir a própria morte e ter controle de aspectos da sua vida, desde o boom dos exercícios aeróbicos de Jane Fonda nos anos 1980, passando pela febre da Yoga, até as mais recentes modas com o Pole Dance e o Crossfit. E tudo isso com muita crítica e autocrítica.
A técnica narrativa de fluxo de consciência, utilizada por autores como James Joyce e Virginia Woolf, nos dá a sensação de acompanharmos os pensamentos de Bechdel dentro da sua cabeça, o que a faz parecer bem neurótica às vezes, como Woody Allen em muitas de suas produções. Na HQ conhecemos uma mulher que simplesmente começou a correr, tanto literal como metaforicamente, e nunca mais parou. Ela não descansa, nem mesmo nos momentos em que comenta sobre meditação e estados de serenidade próximos ao “nirvana”, pois esses momentos também são permeados de uma constante obsessão por controle, seja de si ou de algum contexto.
Nesse sentido, ainda que a HQ seja muito inspiradora em relação à prática de exercícios e ela explore bastante a relação deles com a saúde física, mental, emocional e espiritual, no fundo, as motivações de Bechdel para se manter sempre em movimento são apenas formas de mascarar sua constante insatisfação consigo e com o mundo, o que, no fim das contas, me causou a sensação de ter corrido uma maratona ao fim do quadrinho. Bom, talvez eu devesse ter lido mais pausadamente, uma vez que a quantidade de informações ali pode ser um tanto avassaladora, mas o ritmo que ela emprega à narrativa é realmente muito parecido com uma sequência de exercícios. As constantes reflexões sobre autoestima, autoconhecimento, desenvolvimento, transformação, amadurecimento, amor e morte contrastam com a movimentação incessante de Bechdel da mesma forma que a Yoga e a meditação se contrapõem às maratonas e aulas de Spinning, ou seja, genial, não é?
Essa HQ merecia uma análise aprofundada de cada um dos tópicos levantados nela e certamente, oferece uma série de possibilidades de abordagem de temas complexos que muita gente levaria para uma conversa entre amigos, uma sessão de terapia, uma sala de aula. Quanto a mim, fica uma sensação de culpa por não me exercitar como deveria com um misto de renovação da resolução de ano novo que tenho adiado há uns 10 anos.
Bechdel nos lembra que ainda que não possamos evitar a morte, podemos caminhar até ela de maneira mais digna e os exercícios certamente são um caminho para isso. Ter acompanhado sua relação com eles desde a infância até se tornar oficialmente uma idosa, principalmente quando ela mostra de que forma esse estilo de vida impactou também seus relacionamentos afetivos e até mesmo sua autodescoberta como uma mulher lésbica é uma baita declaração de que quadrinhos seguem sendo uma mídia incrível quando se trata de inspirar e emocionar pessoas. Ou seja, no mínimo, terminamos a HQ com a sensação de que devemos nos exercitar mais e que quadrinhos são mesmo sensacionais.
O segredo da Força Sobre-Humana é a HQ escolhida na 15ª edição de nosso clube de leitura. Saiba mais aqui.
Daniela Marino é pesquisadora de quadrinhos e questões de gênero, graduada em letras, mestre em comunicação e doutoranda em ciência da informação.
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