Performance de gênero nas HQs
Dani Marino, pesquisadora de quadrinhos e questões de gênero, escreve uma crítica aprofundada sobre os livros “Degenerado” e “Pele de Homem”
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Dani Marino, pesquisadora de quadrinhos e questões de gênero, escreve uma crítica aprofundada sobre os livros “Degenerado” e “Pele de Homem”
Minha necessidade de escrever uma análise sobre determinados quadrinhos parte, na maioria das vezes, da minha necessidade de ler críticas aprofundadas sobre esses quadrinhos. Em uma era onde a supremacia dos vídeos curtos se consolida rapidamente, escrever um texto que exige do leitor mais tempo do que levaria assistindo a um vídeo, é realmente desafiador.
No caso específico das HQ Pele de Homem (HUBERT; ZANZIN, Ed. Nemo, 2021) e Degenerado (CRUCHAUDET, Ed. Nemo, 2020), ambas ganhadoras de vários prêmios e elogiadas pela crítica, se perde muito ao dedicar-lhes apenas breves releases disfarçados de resenhas, afinal, ambas tratam de temas atuais relacionados a questões de gênero que vão muito, muito além de impressões como: “são histórias de amor”.
Por exemplo, os quadrinhos trazem a perspectiva acerca de um recurso muito recorrente nas narrativas ficcionais e que é normalmente abordado de forma caricata: o disfarce a partir da transformação em outro gênero. Em Degenerado, temos o ponto de vista de uma mulher a respeito do assunto ao explorar a experiência do marido de Louise, Paul, ao se transformar em Suzanne para deserdar da guerra; enquanto Pele de Homem, traz a impressão de dois homens sobre uma mulher se disfarçando de homem em algum momento da era renascentista na Europa.
Assim, o que me interessa como pesquisadora de quadrinhos e questões de gênero são as relações estabelecidas entre os personagens dessas narrativas, a percepção dos autores quanto às questões de identidade de gênero e sexualidade e quais seriam os pontos de convergência e de divergência entre as duas produções.
Degenerado é frequentemente mencionada com uma história de amor e isso já diz bastante sobre a percepção das editoras e do público em geral a respeito de uma narrativa que pode ter se iniciado como tal, mas que na verdade, acaba retratando um drama baseado em fatos e que já foi explorado em livros, filmes e documentários. A história de Louise Landy e Paul Grappe é uma história de traição, assassinato, violência, descoberta da (bi)sexualidade, não-monogamia, alcoolismo e de identidade de gênero: Paul já traía Louise com outra mulher no começo de seu relacionamento com ela, porém, quando Louise descobre, Paul apenas a comunica que gostaria de continuar casado, mas que iria manter relacionamentos com outras pessoas. Essas informações estão contidas nos arquivos do advogado de Louise e trechos de cartas e diários do casal são reproduzidos ao final da HQ, juntamente com um resumo sobre o livro que deu origem ao quadrinho: La Garçonne et l’assassin, de Danièle Voldmann e Fabrice Virgili.
Bom, Louise não teve muito tempo para pensar a respeito das informações que Paul a havia dado, pois tão logo a Primeira Guerra eclode, ele é convocado a servir. A partir daí, acompanhamos a angústia de Paul que chega a se mutilar para tentar fugir da guerra, porém a maior parte da HQ foca nos eventos que ocorrem quando Paul foge do front e se disfarça de mulher durante os 10 anos seguintes para não enfrentar uma sentença por deserção.
Ricamente ilustrada em tons de sépia e com vermelho usado pontualmente, a HQ então apresenta o cotidiano de um casal disfuncional formado por uma mulher loucamente apaixonada pelo marido e disposta a apoiá-lo incondicionalmente e um homem que se descobre interessado em voyerismo, sexo grupal com homens e mulheres e, acima de tudo, que não consegue mais se encaixar dentro das expectativas de gênero vigentes na época: Paul se apega à personagem Suzanne, vive uma vida boêmia regada à muito álcool e sexo e, mesmo depois de ser anistiado pelo exército, não consegue mais se limitar a ser apenas Paul, pois havia descoberto muito prazer em ser Suzanne. No entanto, apesar de não mais se encontrar dentro do papel do homem hétero e cis, em nenhum momento ele abandona seus hábitos violentos e machistas: Paul violenta Louise psicológica e fisicamente durante anos, a ponto de ela matá-lo com 2 tiros em um momento de desespero enquanto ele a agredia.
A arte fluída de Cruchaudet em “Degenerado”
Por outro lado, em Pele de Homem, cuja relação com a realidade reside em alguns poucos pontos de crítica à hipocrisia das pessoas religiosas e à moralidade líquida da sociedade, seu maior o trunfo é o de subverter um tropo muito recorrente das narrativas LGBTs produzidas por pessoas hétero que é de nunca permitir que essas pessoas tenham um final feliz. Um final feliz que o próprio Humbert não teve a chance de experimentar: tendo produzido trabalhos em favor dos direitos das pessoas LGBTQIAP+, o artista faleceu em 2020, pouco antes do lançamento da HQ.
Ainda que seja uma história fantasiosa sobre uma mulher que herda uma pele de homem e a usa para investigar e conhecer melhor seu futuro marido, a HQ oferece um ótimo pano de fundo para discutir sexualidade, identidade de gênero, heteronormatividade e monogamia. Isso porque a jovem Bianca, ao se aproximar do noivo Giovanni como Lorenzo, acaba descobrindo que seu pretendente é gay. A solução mais óbvia para a constatação de Bianca seria a de terminar o noivado, porém, além de apreciar sua relação com Giovanni enquanto disfarçada de Lorenzo, ela não se incomoda com a orientação sexual dele. Assim, em vez de um drama shakespeareano, temos uma comédia romântica em traços cartunescos que não tem a menor intenção de apresentar temas complexos de maneira séria, mas, que ao mesmo tempo, fornece subsídios para que isso seja feito a partir da narrativa. Por se tratar de um quadrinho que não tem qualquer compromisso com a realidade histórica, os autores tiveram a liberdade de imaginar um futuro positivo para os personagens que desejam existir como são: Giovanni e Bianca mantém o casamento cujo acordo prevê que ele tenha seus namorados e ela também tenha os dela e onde todos cuidam do filho do casal.
Ou seja, em ambas as narrativas podemos observar como o gênero é performado a partir das expectativas sociais vigentes de forma que muitas vezes aprisiona as pessoas que não se identificam com esses papéis e, ao mesmo tempo, é utilizado para justificar comportamentos tidos como essenciais, mas que na verdade, são aprendidos e reproduzidos a partir da socialização constante desde a infância. Paul não deixa de ser violento e nem deixa de reproduzir comportamentos machistas porque passa a se vestir como uma mulher e, por mais que se apegue à Suzanne, ele mesmo não se entende como uma mulher de maneira definitiva. Sua identidade de gênero seria muito mais flúida, do que transgênero.
Esses comportamentos ilustrados de maneira genial nessa página remetem ao que Simone de Beauvoir postula a respeito de não se nascer mulher, mas tornar-se. Feminilidade e masculinidade são conceitos constituídos de uma série de símbolos que são reforçados cotidianamente a partir de práticas e discursos: uma mulher deve se portar assim, um homem não deve chorar, uma mulher se move desse jeito, um homem deve ser viril, e assim por diante.
A performatividade de gênero é defendida por Judith Butler em seu livro Gender Trouble, de 1990, e também é ilustrada por Bianca em Pele de Homem, quando ela precisa aprender a andar e se portar como um.
Já Teresa de Lauretis (A tecnologia do Gênero, 1994), entende que o gênero como uma tecnologia que opera a partir de dispositivos que reforçam relações de poder como os discursos e as práticas a fim de produzir subjetividades. Ou seja, a tecnologia do gênero seria um mecanismo que dispõe de procedimentos, técnicas, práticas e discursos na produção de pessoas que se identifiquem como pertencentes aos gêneros masculinos ou femininos.
Ambas as representações colocam em cheque as concepções conservadoras sobre gênero ao propor que gênero não é essência e que sexo biológico não é capaz de prever e definir nenhum comportamento tido como essencial a um gênero a menos que esse comportamento seja aprendido e reforçado constantemente. Paul é completamente assimilado e aceito como Suzanne porque sua performance de feminilidade está de acordo com as expectativas sociais vigentes para o gênero feminino do início do século XX e Bianca, ainda que estivesse utilizando uma pele de homem, só foi aceita e entendida como um porque aprendeu os trejeitos esperados de um homem em determinado contexto.
Esses são apenas alguns dos aspectos que podem ser observados a partir de teorias relacionadas a gênero quando nos aprofundamos nas narrativas além do que as sinopses e releases nos entregam. Essas percepções podem variar de acordo com o repertório do leitor, no entanto, vale lembrar que temas relacionados a questões de gênero são muito atuais e ter duas HQ que abertamente exploram assuntos que ainda são considerados tabu em alguns ambientes serem tão premiadas e elogiadas é, no mínimo, um sinal de que os quadrinhos seguem propiciando boas discussões e análises que vão muito além do entretenimento, mesmo quando esses temas são abordados de maneira mais despretensiosa.
Obviamente essas discussões podem (e talvez sejam posteriormente) ampliadas e aprofundadas em artigos acadêmicos, mas o objetivo aqui é apenas aguçar a curiosidade de quem se interessa por boas histórias e questões pertinentes à atualidade e eu espero ter atingido esse objetivo levando você a correr atrás desses quadrinhos e a refletir sobre o que consome com novos filtros.
Boa leitura!
Daniela Marino é pesquisadora de quadrinhos e questões de gênero, graduada em letras, mestre em comunicação e doutoranda em ciência da informação.
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Dani Marino é especialista em histórias em quadrinhos e questões de gênero. Mestre em Comunicação e doutoranda em Ciência da Informação pela ECA/USP, também atua como professora de Literatura Inglesa. Ganhadora de 2 troféus HQMIX com o livro Mulheres e Quadrinhos, que organizou com Laluña Machado, já colaborou com diversos sites e canais especializados em cultura pop.