Por que homens não leem mulheres?
Apesar dos avanços, ainda há muita resistência entre os homens quando se trata de consumir obras produzidas por mulheres. Por que será?
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Apesar dos avanços, ainda há muita resistência entre os homens quando se trata de consumir obras produzidas por mulheres. Por que será?
A pergunta do título contempla todos os campos de produção artística e intelectual: Por que homens seguem resistentes em consumir as produções das mulheres?
Embora saibamos a resposta prontamente, é preciso entender os motivos que tornam tão difícil para as mulheres superarem certas barreiras, pois só assim é possível pensarmos em ações para mudar essa realidade. Por isso, ao repetirmos que o machismo é responsável pelo apagamento sistêmico das mulheres ao longo da história corremos o risco de encerrar qualquer possibilidade de debate ou crítica, afinal, a noção de que se trata de um problema estrutural vem frequentemente acompanhada de um conformismo que nos mantém em constante estado de inércia.
No livro A Lacuna de Autoridade, de Mary Ann Sieghart (Ed. Benvirá, 2022), a autora explora a desigualdade de gênero existente em todos as esferas sociais a partir da situação das mulheres estadunidenses e por meio de inúmeros dados que ilustram o fato de que mesmo quando uma mulher alcança o posto mais alto em um determinado campo de atuação, como é o caso das juízas da Suprema Corte, estas não gozam do mesmo status de autoridade que seus colegas do sexo masculino. Ou seja, independente da capacidade e competência, mulheres seguem não sendo legitimadas em praticamente nenhuma área porque o status de autoridade sobre algo é medido a partir de valores subjetivos, não técnicos e quem outorga esse status são agentes que possuem maior capital simbólico dentro de determinado campo. Em outras palavras, socialmente falando, são os homens que se encontram nos postos mais altos da sociedade e em maior quantidade, são eles que têm o poder de validar a existência e o status de outras pessoas em seus ambientes e, em decorrência do machismo que impossibilita que mulheres sejam enxergadas como seres competentes e de autoridade sobre algo, esses homens tendem a validar majoritariamente outros homens.
Nos quadrinhos isso ocorre de maneira muito parecida com o que ocorre na literatura. Há inúmeros trabalhos sobre o apagamento das mulheres na literatura como o da pesquisadora Regina Delcastagnè, da UNB, por exemplo. Mas o trecho do livro de Sieghart sobre esse fenômeno nos EUA, pode nos dar pistas de como lidar com o problema por aqui:
“Todos nós – em maior ou menor grau, e muitas vezes sem perceber – tendemos a esperar menos das mulheres, ouvi-las com menos atenção e nos sentir desconfortáveis com elas em posições de autoridade. Mas há homens que não se expõem às vozes das mulheres em primeiro lugar, em todo o espectro cultural, sejam as mulheres nas mídias sociais, escrevendo livros ou aparecendo em filmes. Se esses homens não estão ouvindo, lendo ou observando as mulheres, como podem atribuir-lhes alguma autoridade? Como eles sabem se as mulheres são boas?
A maneira mais fácil de medir esse fenômeno — de mulheres assobiando para o vazio — é olhar para os livros que homens e mulheres leem. Livros de não-ficção são fontes de autoridade sobre um assunto; a ficção nos leva aos mundos e mentes de outros humanos, ampliando nossa empatia e compreensão.
Como o relatório concluiu: “Homens que leem ficção tendem a ler ficção de homens, enquanto mulheres leem ficção de mulheres e homens. Consequentemente, a ficção de mulheres continua sendo um ‘interesse especial’, enquanto a ficção de homens ainda define o padrão de qualidade, narrativa e estilo.” Se você pensar no “grande romance americano”, aposto que o associa imediatamente a Mark Twain, John Steinbeck, Philip Roth ou Jonathan Franzen. Mas e quanto a Toni Morrison, alguém? Harper Lee? Alice Walker? Donna Tart?
No geral, olhando para os livros mais vendidos (ficção e não ficção) no Reino Unido, as mulheres leem um pouco mais do que os homens: os leitores desses livros eram 54% do sexo feminino e 46% do sexo masculino. Mas quando você os divide por autor, os resultados são dramaticamente diferentes.
Entre as dez autoras femininas mais vendidas (que incluem Jane Austen e Margaret Atwood, assim como Danielle Steel e Jojo Moyes), apenas 19% de seus leitores são homens e 81% mulheres. Mas para os dez autores masculinos mais vendidos (que incluem Charles Dickens e J. R. R. Tolkien, bem como Lee Child e Stephen King), a divisão é muito mais equilibrada: 55% homens e 45% mulheres. Em outras palavras, as mulheres estão preparadas para ler livros de homens, mas muito menos homens estão preparados para ler livros de mulheres. E a autora feminina entre os dez primeiros que teve o maior público masculino – o escritor de suspense L. J. Ross – usa suas iniciais, então é possível que seus leitores homens não soubessem de seu gênero. O que isso nos diz sobre como somos relutantes em conceder autoridade igual — intelectual, artística, cultural — a mulheres e homens?
Não é como se as mulheres fossem menos hábeis em escrever ficção literária. Pelo contrário. Em 2017, todos os cinco romances literários mais vendidos no Reino Unido e na Irlanda foram escritos por mulheres e nove dos dez mais vendidos. E não é como se os homens não gostassem de ler livros de mulheres quando os lêem; na verdade, eles os preferem marginalmente. A classificação média que os homens dão aos livros de mulheres no Goodreads é de 3,9 em 5; para livros de homens, é 3,8.
Assim como os homens relutam em ler autoras femininas, também relutam em revisá-las ou recomendá-las.
Voltando à não-ficção, que é lida por um pouco mais de homens do que mulheres, o padrão é semelhante, embora não tão impressionante. Os homens ainda leem muito mais autores do sexo masculino do que do sexo feminino, mas a discrepância não é tão grande porque as mulheres tendem a fazer o mesmo em favor das autoras do sexo feminino. Mas ainda há bastante diferença. As mulheres são 65% mais propensas a ler um livro de não ficção do sexo oposto do que os homens. E isso sugere que os homens, consciente ou inconscientemente, não atribuem às autoras mulheres tanta autoridade quanto às masculinas. Ou eles fazem a suposição preguiçosa de que os livros femininos não são para eles sem experimentá-los para ver se isso é verdade.
“Isso não é ruim apenas para as vendas de livros femininos. Ela estreita as experiências dos homens sobre o mundo.”
“Eu sei disso há muito tempo, que os homens simplesmente não estão interessados em ler nossa literatura”, disse-me Bernardine Evaristo. “Então, o que isso diz sobre nossa sociedade? Nossa literatura é uma das maneiras pelas quais exploramos a narrativa, exploramos nossas ideias, desenvolvemos nosso intelecto, nossa imaginação. Se estamos escrevendo histórias de mulheres, estamos falando sobre as experiências das mulheres. Também falamos sobre experiências masculinas a partir de uma perspectiva feminina. E se eles não estão interessados nisso, acho que isso diz muito e é muito condenável e extremamente preocupante. Parece-me que somos vistos como menos importantes e mais insignificantes. E isso é um grande problema.”
Os revisores masculinos do Spectator eram quatro vezes mais propensos a recomendar livros de outros homens do que livros de mulheres. As (muito menos) revisores do sexo feminino foram muito mais imparciais, recomendando 42% homens, 58% mulheres. No TLS também, os homens recomendaram livros que eram 69% de homens e apenas 31% de mulheres; a divisão feminina foi de 44:56. Mesmo no New Statesman (onde dois terços dos revisores eram do sexo masculino, apesar de seu ethos progressivo), os homens mostraram exatamente o mesmo viés 69:31, mas pelo menos foi contrariado por revisores do sexo feminino que recomendaram muito mais livros de mulheres. Assim, os críticos homens estão dando muito mais autoridade aos escritores homens do que às mulheres. E os próprios críticos são supostamente autoridades no mundo da literatura. Como resultado, os leitores são levados a acreditar, primeiro, que os homens têm mais autoridade para recomendar quais livros ler e, segundo, que livros de homens são melhores do que livros de mulheres. Nenhuma das duas é verdadeira, mas ambas servem para exacerbar a lacuna de autoridade.
“Quando me pedem para recomendar livros, quase sempre escolho mulheres. E quase sempre escolho mulheres negras ou negras, porque sei que se não o fizer, é muito improvável que elas estejam nessas listas. Então eu faço questão de fazer isso porque pelo menos haverá dois ou três livros lá que não são de brancos e nem de homens brancos.”
Essas discrepâncias geram consequências na vida real. Além de não serem levadas tão a sério quanto os homens, as escritoras têm que aturar ganhar menos porque muito menos homens estão lendo seus livros e, portanto, seus editores os valorizam menos. A socióloga Dana Beth Weinberg e o matemático Adam Kapelner, do Queens College-CUNY, analisaram 2 milhões de títulos publicados na América do Norte entre 2002 e 2012. Eles descobriram que, em média, os livros de mulheres custavam 45% menos do que os livros de homens.
Mas também tem consequências para todos nós. “As vozes das mulheres não estão sendo ouvidas. As mulheres são mais da metade da nossa cultura. Se metade dos adultos em nossa cultura não tem voz, metade da experiência do mundo não está sendo atendida, aprendida ou construída. A humanidade é apenas metade do que poderíamos ser”, escreve Nicola Griffith.”
Mary Ann Sieghart
Em 2010 a jornalista Lorraine Berry chamou a atenção para o fato de que além de receberem menos interesse dos críticos, as mulheres ainda eram expostas a péssimas entrevistas: http://talkingwriting.com/women-writers-and-bad-interviews
Infelizmente, os quadrinhos seguem a mesmíssima tendência, como eu já havia apontado no texto sobre as obras da Liv Stromquist.
Atualmente me encontro no 1º ano do doutorado em ciência da informação, produzindo uma tese sobre a crítica especializada em quadrinhos e a produção feminina, então, você ainda vai me ver falando mais sobre o assunto por aqui nos próximos anos. Até aqui, o que você conclui a respeito?
Daniela Marino é pesquisadora de quadrinhos e questões de gênero, graduada em letras, mestre em comunicação e doutoranda em ciência da informação.
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Dani Marino é especialista em histórias em quadrinhos e questões de gênero. Mestre em Comunicação e doutoranda em Ciência da Informação pela ECA/USP, também atua como professora de Literatura Inglesa. Ganhadora de 2 troféus HQMIX com o livro Mulheres e Quadrinhos, que organizou com Laluña Machado, já colaborou com diversos sites e canais especializados em cultura pop.