Na sala dos espelhos
HQ aborda a relação tóxica que temos com nossa autoimagem e que é impulsionada pelas redes sociais.
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HQ aborda a relação tóxica que temos com nossa autoimagem e que é impulsionada pelas redes sociais.
HQ aborda a relação tóxica que temos com nossa autoimagem e que é impulsionada pelas redes sociais.
Em mais uma brilhante incursão pelo universo das relações humanas mediadas pelos dispositivos digitais, a socióloga sueca Liv Stromqüist acerta em focar seu novo trabalho na discussão sobre como as redes sociais exacerbam sentimentos negativos acerca de nossos corpos e personalidades. A autora, bem sucedida em suas obras anteriores publicadas no Brasil, já tratou da obsessão dos homens cis por aquilo que convencionou-se chamar de genitália feminina (A Origem do mundo, 2019) e se aprofundou nas questões que fazem com que idealizemos o amor romântico até hoje (A Rosa mais vermelha desabrocha, 2021).
Em Na sala dos espelhos: Autoimagem em transe ou beleza e autenticidade como mercadoria na era dos likes e outras encenações do eu (2023, Quadrinhos na Cia), Stromqüist recorre à mesma estrutura gráfica utilizada nas HQs anteriores: mistura técnicas de lettering e muitas citações de teóricos diversos para sustentar as imagens que apresenta. No entanto, não sei se por ser um assunto mais atual ou por ela ter usado menos referências teóricas que nos livros anteriores, esse é um trabalho que parece mais leve e de mais fácil identificação por parte das leitoras.
Ainda que haja um recorte bem específico na HQ, que é o de mulheres majoritariamente brancas e cis/het, os mecanismos que nos oprimem irão oprimir a todas, mesmo que não no mesmo grau dependendo dos marcadores sociais que cada mulher carrega, mas o fato é: ter conhecimento sobre como esses mecanismos de opressão operam e de como o machismo e o capitalismo se retroalimentam possibilita que tenhamos ferramentas para combatê-los. Nomear os problemas é fundamental para que eles existam e possam ser temas de campanhas e políticas públicas que nos beneficiem, afinal, algo que não pode ser nomeado, não existe formalmente.
Liv começa apresentando a relação que nós estabelecemos com as imagens às quais somos submetidas nas redes sociais a partir das irmãs Kardashians e analisa a obsessão mundial na figura da mais nova delas, a Kyllie Jenner. Jenner, como símbolo do que há de mais sexy e desejado no mundo, acaba por definir o ideal que todas nós deveríamos buscar. Essa busca incessante em parecer com um ideal inalcançável, como sabemos, fortalece dois sistemas: machismo e capitalismo.
O machismo porque, estando constantemente inseguras com nossa imagem, dedicamos todo tempo que podemos buscando reparar o que aprendemos a odiar em nós mesmas, ou seja, com isso, deixamos de nos mobilizar politicamente. E o capitalismo porque essa nossa constante insatisfação gera milhões para a indústria cosmética, majoritariamente chefiada ou em posse de homens.
Ainda que algumas coisas tenham mudado nas últimas décadas, Stromqüist avalia se essas mudanças são tão significativas a ponto de podermos dizer que estamos finalmente livres (spoiler: estamos bem longe disso). Mas, ainda que tendo acesso a essas informações nós não deixemos de estar sujeitas às opressões, é extremamente empoderador e libertador agir dentro dessa lógica de forma consciente, pois ao nos apropriarmos de algumas das estratégias em nosso favor, nós conseguimos tirar algum proveito delas e atuar mais enfaticamente para que elas mudem, pois conhecemos seus mecanismos e como atuam.
Assim como a Helô D’Ângelo ilustrou em seu jogo da beleza, contido no livro Nos Olhos de quem vê, não somos capazes de ganhar nessa corrida por enquanto, ao mesmo tempo, podemos ter esperança de que as próximas gerações não precisarão se submeter a algumas das violências que ainda são bastante recorrentes e nos apropriar de quem somos com mais segurança a ponto de sermos capazes de barrar certas atitudes e sentimentos antes que nos afetem.
Ao longo da HQ, além das citações de teóricos e ilustrações de situações atuais, Stromqüist também nos apresenta aspectos históricos e mulheres que definiram os padrões de beleza em sua época, desde Sissi, a imperatriz da Áustria à Marylin Monroe que morreu de overdose apenas 6 semanas depois de ter passado dias em um hotel onde mais de 2.000 fotos suas foram tiradas em um ensaio sensual. Muitas dessas fotos não foram aprovadas pela atriz, que riscou os negativos com caneta vermelha e, esses negativos, seriam transformados em fotos que foram expostos em uma galeria sem que ela nunca tivesse consentido tamanha morbidez e exploração.
Na Sala dos Espelhos tem um potencial didático e pedagógico gigantesco para rodas de debates que visem conscientizar mulheres sobre a importância de não nos atermos tanto a uma busca irracional por esse ideal inalcançável e eu mesma teria me beneficiado demais se na minha adolescência eu tivesse tido acesso a materiais como esse em vez de revistas femininas. Também me entristece pensar que as adolescentes de hoje em dia estão muito mais expostas a esses padrões, embora nossa educação, ao menos no Brasil, esteja muito longe de proporcionar meios para que essas jovens sejam capazes de equalizar os efeitos nocivos das redes sociais com alguma consciência sobre eles.
Por isso, se você é educador(a) ou convive com jovens, promova uma roda de leitura ou presenteie as jovens mulheres que conhece. Elas serão muito gratas lá na frente.
Daniela Marino é pesquisadora de quadrinhos e questões de gênero, graduada em letras, mestre em comunicação e doutoranda em ciência da informação.
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Dani Marino é especialista em histórias em quadrinhos e questões de gênero. Mestre em Comunicação e doutoranda em Ciência da Informação pela ECA/USP, também atua como professora de Literatura Inglesa. Ganhadora de 2 troféus HQMIX com o livro Mulheres e Quadrinhos, que organizou com Laluña Machado, já colaborou com diversos sites e canais especializados em cultura pop.